A Medicina Baseada em Evidências (MBE) ainda enfrenta uma série de argumentos contrários à sua validade. Em parte, o principal responsável é o desconhecimento total ou parcial a respeito do que seja e como opera a Metodologia Científica. Os cursos de graduação, em sua grande maioria, negligenciam a formação profissional envolvendo conceitos científicos. E a MBE nada mais é que ciência; um conjunto de ferramentas que procura identificar e divulgar as melhores evidências científicas. Em geral, o médico não possui formação adequada para analisar a qualidade de uma publicação científica, um comentário, uma aula de um evento de atualização profissional, por pura deficiência de formação. Poucas faculdades incluem o ensino de conceitos envolvendo metodologia científica, epidemiologia e bioestatística em seus currículos. O que então se pode esperar de um profissional, com tais deficiências, mas que deveria ser capaz de fazer uma análise crítica de uma revisão sistemática ou metanálise? Para muitos de nós, seria pedir muito. Daí deriva, então, o preconceito.
Para além da desinformação de base científica, há um conjunto de ideias, entretanto, que acusa a MBE de ser uma área muito deslocada, divergente até, das condições práticas do dia a dia do exercício da clínica. Estas ideias consideram a MBE desprovida de características que permitam seu emprego junto ao paciente real. Ao contrário dessa crença, a moderna MBE procura sim se inserir na realidade dos pacientes, inclusive em níveis bem mais profundos.
É desta inserção que surge o conceito da DECISÃO COMPARTILHADA (DC). Ao contrário da Decisão Informada, na qual o médico apresenta o plano diagnóstico e de condutas ao paciente, que concorda – através de um termo de Consentimento – ou não, na forma compartilhada a decisão é tomada em conjunto.
O processo de tomada de uma DC, grosso modo, pode ser resumido por 3 etapas sequenciais:
1 – A EVIDÊNCIA
São os dados objetivos disponíveis, à luz da ciência, a respeito dos processos de diagnóstico, tratamento, cura ou intervenções paliativas. Cada um deles com suas taxas de sucesso e insucesso, riscos, efeitos colaterais, diferentes relações de custo-benefício. Eles incluem, também, aqueles aspectos incertos, a respeito dos quais não existem dados confiáveis ou mesmo disponíveis. O paciente deve ser apresentado a tais informações, de forma que lhe seja acessível e compreensível, a fim de que possa participar das decisões em conjunto com a equipe médica/multiprofissional que o assiste.
2 – A CLÍNICA
Aqui devem ser considerados aspectos da individualidade clínica do paciente e aspectos gerais da abordagem proposta ou considerada. Há inúmeros escores de risco disponíveis, para inúmeras situações clínicas. Nestes casos, apresentar de forma acessível ao paciente informações relativas a variáveis como “Número Necessário a Tratar” (NNT) e “Redução Relativa do Risco” (RRR). Lembremos que ambos são oriundos de modelos probabilísticos, nem sempre de fácil compreensão caso mal explicados. O RRR é uma variável generalizável (ela mede a eficácia de determinada intervenção), enquanto o NNT é uma propriedade individual de quem recebe um tratamento (é o número médio de pacientes que precisam receber uma intervenção específica – grupo tratado – para que ocorra o desfecho desejado em um paciente a mais do que o número que ocorreria no grupo controle, mantidas as mesmas condições do estudo).
É comum ouvirmos em nosso meio algo como “uma coisa são os dados do estudo, outra é o indivíduo no consultório”.
Trata-se de um engano, uma vez que se não nos basearmos no RRR do estudo, não teremos como analisar o impacto individual de determinada conduta.
3 – O PACIENTE
Aqui são considerados os valores e preferências do paciente. Se na etapa 2 considerou-se a probabilidade de benefício com a conduta médica, nesta etapa deve ser respondida a pergunta: o paciente aceita esta aposta probabilística? “Aposta”, obviamente, não no sentido monetário, mas meramente no campo das probabilidades.
Quanto maior o benefício é de se esperar que seja maior a aceitação de baixas probabilidades por parte dos pacientes. Mas podem haver exceções. E elas precisam ser consideradas e respeitadas. O próprio conceito de “benefício” pode variar entre indivíduos diferentes. Por exemplo, uma mesma cirurgia ortopédica pode gerar um benefício muito maior a um atleta de alto desempenho do que para um indivíduo sedentário, com riscos de insucesso iguais para ambos. É possível que o atleta tolere mais riscos do que o não atleta.
Utilizar as preferências do paciente para construção de nossa recomendação é o contrário do que fazemos hoje. Atualmente, emitimos nossa preferência, baseada em evidências, para que o paciente a aceite. Mas o paciente não possui formação para interpretar essas evidências e adaptá-las às suas preferências. Assim, deveríamos analisar as perspectivas do paciente anteriormente à emissão de uma recomendação. Esta conduta, que não precisa ser explícita (pode estar apenas implícita) é o que chamamos de DECISÃO COMPARTILHADA.
Até uma próxima oportunidade!